quinta-feira, 21 de junho de 2012

A VIDA EM STAND-UP COMEDY


Dois cidadãos aparentemente muito íntimos, mas distantes por culpa dos caprichos da vida, encontram-se num soturno parque, aonde os frustrados e os críticos colocam a vida no banco dos réus, e escamoteiam-na sem piedade nem hesitação. Aliás, segundo eles, a própria vida os ensinou que as coisas devem ser osso no osso, olho por olho. A vida faz isso com eles e com todos…uns resistem, outros desistem, a maioria fica refém dos solavancos dela! Então, já tentando suprir a distância temporal que os havia separado por longos caminhos desenrascados da vida, entreolharam-se quando por ai 20 metros os separavam um do outro, reconheceram-se apesar de todas as glaciações faciais próprias das intempéries do viver e sobretudo da sobrevivência amealhatória:
- Mon amiiiiiiii!, gritou um com os braços abertos correndo em direcção ao outro que o corresponde proporcionalmente.
- Ehhhh, mon grand amiiiii!, também de braços abertos e correndo ao outro. Adivinhava-se um abraço tão farto que fosse compensar todos os amplexos que não haviam trocado por anos e anos. Ambos corriam arrastados pela saudade mútua, pelo belo passado jovem que os mantinha em pé, pela fugidia esperança. Um abraço forte os fez um e, como que num salto duplo de asa delta, escorregaram de volta às emoções do passado. Sentiram-se jovens, veio-lhes aquela liberdade, e aqueles céus e paraísos respectivos. Por instantes promovidos a anjos, só o parque permanecia infernal: fedia a urina em ebulição, fezes em decomposição, ambiente ocupado preferencialmente por quem parecia desistir de batalhar.
- Por onde tens andado, mon ami? Fala…fala de ti, sour ta vie…, enquanto ainda entreabraçados, cada um como que a conferir rugas e tristezas, e sobrevivências na face doutro.
- Mano, esta vida é de cão…vida de canino mesmo. Nada é como sonhámos. Mas, Graças a Deus, tenho tido algumas sortes…por isso estou vivo…vivo de respirar, não de viver! O outro ouviu aquelas azedas confissões como se o amigo falasse do seu próprio currículo nos últimos anos. E propõe uma mesa redonda:
- Mas, …vamos analisar o que terá se passado mesmo para acabarmos deste jeito, mano. Éramos bons dans l´école…o que terá falhado?
- Sabes, fico decepcionado contigo quando me pedes para analisar…puxa!, a que ponto chegámos?!
- Como assim, mon ami? Precisamos fazer análise como nos velhos tempos. Era assim que compreendíamos as coisas e encontrávamos soluções…ou já não te lembras?!!
- Epá, deixa lá essa porcaria de analisar com os homossexuais…isso é uma sujidade do tamanho do pecado!
- Não percebi o teu ponto de vista…de que é que estás a falar, pá?!
- Sabes, eu te conheci como um grande artilheiro de damas rabugentas…não deixavas escapar nenhuma. Sabias lidar com qualquer rabo feminino que fosse carnudo…qualquer medida, a partir de xxxl…uhmm!!!?
- E o que isso tem a ver com análise ou analisar?! E isso com homossexuais?!
- Olha, eu prefiro morrer de erecção com a minha honra masculina salvaguardada…mas analisar…nem pensar.
Tudo indicava que a odisseia ao passado havia de acabar exactamente no abraço onde começara. A conversa não fluía. Cada um parecia bárbaro ao outro. Era uma autêntica conversa entre um extraterrestre e um terrestre. Mas, a conversa ia aos empurrões:
- Olha, mon ami, o que esta conversa tem a ver com a tua virilidade?!
- A única vez, perceba bem, a única vez que me analisaram eu era miúdo e havia uma necessidade sanitária…foi por recomendação médica…introduziram-me supositório! Nunca mais na vida, por qualquer outra razão alguém me vai analisar…não enquanto eu estiver consciente!
- Puxa!, Martins[†], afinal você está a pensar nisso…agora eu é que fico ofendido…como foste capaz de chegar até ai?
Ficaram ali os dois, com as mãos sobrepostas na nuca, com a cabeça entre as pernas, sentados num bocado de betão, de costas viradas um para o outro…visivelmente decepcionados um com o outro. Como um teria tido a coragem de propor uma análise? Como o outro teria interpretado a análise naquela insana perspectiva?
Silenciosos minutos depois, Martins emerge da decepção, ergue a cabeça, levanta-se e já afastando-se do outro, declara:
- Eu não sou analista…nunca fui e nunca serei…não sou analista…não sou dessa era!
- E pensas que eu sou? Eu sei que não és…volta aqui, vamos bater um papo…
- É assim como estragam a carne de galinha…batem-lhes o papo, a coisa rebenta e a comida fica com aquele cheiro de capoeira! Nunca aprendem…não quero!
E, sem acreditar que aquele encontro estava a escorregar para um desencontro que podia ser definitivo, porque Martins se ia sem sequer olhar para atrás, murmurando ao coro dos movimentos gestuais dos braços, tenta convencê-lo desesperadamente:
- Martingéeeeee….!, volta aqui, meu…volta Martins…por favor, meu sócio!
Martins refina no desprezo e desinteresse na relação e na conversa, e delibera:
- Caramba, pá! A nossa sociologia acabou! Notre sociologie est finie…

Adriano Félix

[†] Martins sofria de doença mental desde que a mulher da sua vida o abandonara com tudo o que ele havia conseguido na vida, e já não dizia nem interpretava a s coisas normalmente! Morreu semanas depois do histórico encontro. Paz à sua alma!

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