Dois cidadãos aparentemente muito íntimos, mas
distantes por culpa dos caprichos da vida, encontram-se num soturno parque,
aonde os frustrados e os críticos colocam a vida no banco dos réus, e
escamoteiam-na sem piedade nem hesitação. Aliás, segundo eles, a própria vida
os ensinou que as coisas devem ser osso no osso, olho por olho. A vida faz isso
com eles e com todos…uns resistem, outros desistem, a maioria fica refém dos
solavancos dela! Então, já tentando suprir a distância temporal que os havia
separado por longos caminhos desenrascados da vida, entreolharam-se quando por
ai 20 metros
os separavam um do outro, reconheceram-se apesar de todas as glaciações faciais
próprias das intempéries do viver e sobretudo da sobrevivência amealhatória:
- Mon
amiiiiiiii!, gritou um com os braços abertos correndo em direcção ao outro
que o corresponde proporcionalmente.
- Ehhhh,
mon grand amiiiii!, também de braços abertos e correndo ao outro.
Adivinhava-se um abraço tão farto que fosse compensar todos os amplexos que não
haviam trocado por anos e anos. Ambos corriam arrastados pela saudade mútua,
pelo belo passado jovem que os mantinha em pé, pela fugidia esperança. Um
abraço forte os fez um e, como que num salto duplo de asa delta, escorregaram
de volta às emoções do passado. Sentiram-se jovens, veio-lhes aquela liberdade,
e aqueles céus e paraísos respectivos. Por instantes promovidos a anjos, só o
parque permanecia infernal: fedia a urina em ebulição, fezes em decomposição,
ambiente ocupado preferencialmente por quem parecia desistir de batalhar.
- Por
onde tens andado, mon ami? Fala…fala de ti, sour ta vie…, enquanto ainda
entreabraçados, cada um como que a conferir rugas e tristezas, e sobrevivências
na face doutro.
- Mano,
esta vida é de cão…vida de canino mesmo. Nada é como sonhámos. Mas, Graças a
Deus, tenho tido algumas sortes…por isso estou vivo…vivo de respirar, não de
viver! O outro ouviu aquelas azedas confissões como se o amigo falasse do seu
próprio currículo nos últimos anos. E propõe uma mesa redonda:
- Mas,
…vamos analisar o que terá se passado mesmo para acabarmos deste jeito, mano.
Éramos bons dans l´école…o que terá falhado?
-
Sabes, fico decepcionado contigo quando me pedes para analisar…puxa!, a que
ponto chegámos?!
- Como assim,
mon ami? Precisamos fazer análise como nos velhos tempos. Era assim que
compreendíamos as coisas e encontrávamos soluções…ou já não te lembras?!!
- Epá,
deixa lá essa porcaria de analisar com os homossexuais…isso é uma sujidade do
tamanho do pecado!
- Não
percebi o teu ponto de vista…de que é que estás a falar, pá?!
-
Sabes, eu te conheci como um grande artilheiro de damas rabugentas…não deixavas
escapar nenhuma. Sabias lidar com qualquer rabo feminino que fosse
carnudo…qualquer medida, a partir de xxxl…uhmm!!!?
- E o
que isso tem a ver com análise ou analisar?! E isso com homossexuais?!
- Olha,
eu prefiro morrer de erecção com a minha honra masculina salvaguardada…mas
analisar…nem pensar.
Tudo indicava que a odisseia ao passado havia de
acabar exactamente no abraço onde começara. A conversa não fluía. Cada um
parecia bárbaro ao outro. Era uma autêntica conversa entre um extraterrestre e
um terrestre. Mas, a conversa ia aos empurrões:
- Olha,
mon ami, o que esta conversa tem a ver com a tua virilidade?!
- A
única vez, perceba bem, a única vez que me analisaram eu era miúdo e havia uma
necessidade sanitária…foi por recomendação médica…introduziram-me supositório!
Nunca mais na vida, por qualquer outra razão alguém me vai analisar…não
enquanto eu estiver consciente!
-
Puxa!, Martins[†], afinal você está a
pensar nisso…agora eu é que fico ofendido…como foste capaz de chegar até ai?
Ficaram ali os dois, com as mãos sobrepostas na
nuca, com a cabeça entre as pernas, sentados num bocado de betão, de costas
viradas um para o outro…visivelmente decepcionados um com o outro. Como um
teria tido a coragem de propor uma análise? Como o outro teria interpretado a
análise naquela insana perspectiva?
Silenciosos minutos depois, Martins emerge da
decepção, ergue a cabeça, levanta-se e já afastando-se do outro, declara:
- Eu
não sou analista…nunca fui e nunca serei…não sou analista…não sou dessa era!
- E
pensas que eu sou? Eu sei que não és…volta aqui, vamos bater um papo…
- É
assim como estragam a carne de galinha…batem-lhes o papo, a coisa rebenta e a
comida fica com aquele cheiro de capoeira! Nunca aprendem…não quero!
E, sem acreditar que aquele encontro estava a
escorregar para um desencontro que podia ser definitivo, porque Martins se ia
sem sequer olhar para atrás, murmurando ao coro dos movimentos gestuais dos
braços, tenta convencê-lo desesperadamente:
-
Martingéeeeee….!, volta aqui, meu…volta Martins…por favor, meu sócio!
Martins refina no desprezo e desinteresse na
relação e na conversa, e delibera:
-
Caramba, pá! A nossa sociologia acabou! Notre sociologie est finie…
Adriano Félix
[†] Martins sofria de doença mental
desde que a mulher da sua vida o abandonara com tudo o que ele havia conseguido
na vida, e já não dizia nem interpretava a s coisas normalmente! Morreu semanas
depois do histórico encontro. Paz à sua alma!
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