Questionar “quem gosta do cobrador?” tem
semelhança com questionar “quem gosta de tomar comprimidos?”. A semelhança
entre as duas questões reside no facto de tanto o cobrador quanto os
comprimidos acabarem quase sempre resolvendo nossos problemas, com os devidos
efeitos colaterais a curto, médio ou longo prazos. A diferença é que o cobrador
é racional e os comprimidos não. E, por falar em efeitos colaterais, retorno ao
tema do presente texto: “Quem gosta do cobrador?”. O que vem aqui escrito é
baseado numa experiência quotidiana com os transportes semi-colectivos de
passageiros, vulgo Chapa 100, na Cidade de Nampula. Desde que apareceram os
Chapa os hábitos dos nampulenses mudaram, em termos do quadro de despesas
domésticas (pela inclusão do transporte), em termos de horários e até
flexibilidade (por um lado, já não se consegue percorrer ligeiras distâncias a
pé, mas de Chapa; por outro, pode-se alcançar vários e distantes destinos em
tempo comparativamente menor; e, depois, sai-se um pouco mais tarde para uma
deslocação, porque já não se vai a pé, ou sai-se mais cedo porque os Chapas
andam lotados, dependendo das épocas ou períodos do dia, dos compromissos, etc.),
bem como as pessoas ganharam coragem de passarem a residir em bairros de
expansão da Cidade, geralmente bem distantes dos seus empregos, sem transporte
próprio.
Ora, todas estas mudanças acima referidas
provocadas pelo advento desta variante de serviço de transporte público
desencadearam um processo de elaboração espontânea dum modus vivendi típico marcado pela forte dependência aos Chapas. Ou
seja, doravante, a pontualidade, a sorte, a competência, o desempenho, a
lealdade, a disciplina, dentre outros valores humanos, por parte dos cidadãos
dependem do desempenho do Chapa. Até a vida ou a morte, o local do parto e
muito mais dependem do Chapa. O Chapa, como está claro, não é a viatura, mas as
pessoas que o conduzem, sem as quais a viatura perde a utilidade
transportadora. A aceitarmos esta colocação, aceitamos igualmente a definição
de que o Chapa é a organização constituída pelo motorista, pelo cobrador, pelo
proprietário da viatura e pela própria viatura. Estes são o Chapa. É desta
micro instituição que depende o destino dos cidadãos no quotidiano migracional
urbano.
Na estrada, no fazer Chapa efectivo, se o
proprietário da viatura não coincide com o motorista, então o cobrador é a
autoridade máxima. O cobrador manda, o motorista cumpre, os passageiros
cumprem. Coercivamente ou não, com respeito ou não, mas cumprem! Quem gosta do
cobrador? Naturalmente que o seu patrão, sempre que o cobrador apresenta uma
boa receita diária e diz que a viatura está em óptimo estado, com combustível
já no tanque para o dia seguinte. E entre os passageiros de cada dia, quem
gosta do cobrador?!!? A resposta seria todos e ninguém!
Todos gostam do cobrador porque ele manda a
viatura parar, e os leva aos seus destinos. Ninguém gosta do cobrador porque,
buscando albergar o maior número de passageiros possível, constrange os
passageiros que já tiverem estado na viatura acomodados confortavelmente. Todo
o passageiro que entra no Chapa depois de atingido o limite da lotação oficial
é visto como intruso pelos outros, só não é intruso a quem o conheça. Naturalmente!
É justo que as pessoas almejem viajar de Chapa
numa situação de conforto mínimo. Como também, deve haver alguma razão
(totalmente plausível ou não) para a avidez do cobrador em duplicar a sua
lotação oficial, para ter gerado muito dinheiro ao fim da jornada laboral. A
aversão ao cobrador por parte dos passageiros começa a partir do momento que
aquele desrespeita os passageiros que exigem o respeito à lotação oficial, aos
que se recusam a abrir espaço para acomodar o quinto passageiro onde devem
estar apenas quatro…quando o Chapa pára apenas onde convém ao cobrador. Ou
seja, quando se trata de recolher potenciais passageiros até pode infringir as
regras de trânsito; mas, se algum passageiro pretende apear-se, já se deve
observar as regras de trânsito, sempre em estrita conveniência aos seus intentos.
Diz-se por ai que a pressão do patrão para gerar grandes receitas diárias e a
concorrência selvagem rodoviária se combinam num comportamento do cobrador
quotidianamente reprovado pelos utentes dos serviços de transporte público, as
vítimas circunstanciais. No Chapa,
respeita-se e se desrespeita as regras de trânsito e de lotação. Se há três
senhoras volumosas sentadas na mesma fila, o cobrador quer que elas inventem um
espaço para albergar mais um passageiro…visto que cada fila, oficialmente, deve
levar quatro. Quando são quatro passageiros menos corpulentos, o cobrador quer
que se ofereça os centímetros quadrados livres a mais um passageiro. O único
critério e princípio que rege o fazer Chapa é arrecadar o maior volume de
receita diária possível. O respeito à lentidão dos idosos, das mulheres
grávidas e das crianças, ao tomar o Chapa ou ao apear-se não faz sentido, uma
perda de tempo. É, por conseguinte, uma perda de dinheiro. Afinal, time is money!
Então, o cobrador é aquela pesssoa de quem dependemos
todos os dias em que não temos carro próprio ou boleia particular...se temos
que percorrer longas distâncias, ou simplesmente temos pressa, ou está a
chover...ou já estamos apreguiçados de caminhar! É o mesmo cobrador que, quase
sempre, nos desrespeita e maltrata quando julga que cruzamos o caminho da meta
financeira por si estabelecida para a jornada diária...é o autor de graves
delitos morais, pelo custo de uma passagem de Chapa. Poucos cobradores são
excepção ao perfil! É por via dessa dinâmica quotidiana que se tipifica uma
atitude de aversão mútua entre passageiros e cobradores. O cobrador já vive com
o preconceito de que todo o passageiro é maniento (porque alguns passageiros
são mesmo). O passageiro nutre o preconceito de que todo o cobrador é malcriado
(porque quase todos o são). Daí que o cobrador e os passageiros juntos, no
contexto do Chapa, encontram-se numa situação de “barril de pólvora”! É deveras
ruim detestar-se a entidade de quem se dependa no quotidiano. Deve ser infeliz
tanto ao cobrador quanto aos passageiros. Qual das duas partes deve dar o
primeiro para a pacificação da comunidade Chapa? Seriam os cobradores, classe
que incorpora indivíduos humildes de moral e educação, quem se
consciencializaria da importância de respeitar os passageiros e passariam a
tratá-los deferentemente? Ou seria a comunidade de passageiros, composta por
idosos, académicos, religiosos, etc., que daria o primeiro passo rumo à
pacificação?
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