quinta-feira, 21 de junho de 2012

Quem gosta do cobrador?


Questionar “quem gosta do cobrador?” tem semelhança com questionar “quem gosta de tomar comprimidos?”. A semelhança entre as duas questões reside no facto de tanto o cobrador quanto os comprimidos acabarem quase sempre resolvendo nossos problemas, com os devidos efeitos colaterais a curto, médio ou longo prazos. A diferença é que o cobrador é racional e os comprimidos não. E, por falar em efeitos colaterais, retorno ao tema do presente texto: “Quem gosta do cobrador?”. O que vem aqui escrito é baseado numa experiência quotidiana com os transportes semi-colectivos de passageiros, vulgo Chapa 100, na Cidade de Nampula. Desde que apareceram os Chapa os hábitos dos nampulenses mudaram, em termos do quadro de despesas domésticas (pela inclusão do transporte), em termos de horários e até flexibilidade (por um lado, já não se consegue percorrer ligeiras distâncias a pé, mas de Chapa; por outro, pode-se alcançar vários e distantes destinos em tempo comparativamente menor; e, depois, sai-se um pouco mais tarde para uma deslocação, porque já não se vai a pé, ou sai-se mais cedo porque os Chapas andam lotados, dependendo das épocas ou períodos do dia, dos compromissos, etc.), bem como as pessoas ganharam coragem de passarem a residir em bairros de expansão da Cidade, geralmente bem distantes dos seus empregos, sem transporte próprio.

Ora, todas estas mudanças acima referidas provocadas pelo advento desta variante de serviço de transporte público desencadearam um processo de elaboração espontânea dum modus vivendi típico marcado pela forte dependência aos Chapas. Ou seja, doravante, a pontualidade, a sorte, a competência, o desempenho, a lealdade, a disciplina, dentre outros valores humanos, por parte dos cidadãos dependem do desempenho do Chapa. Até a vida ou a morte, o local do parto e muito mais dependem do Chapa. O Chapa, como está claro, não é a viatura, mas as pessoas que o conduzem, sem as quais a viatura perde a utilidade transportadora. A aceitarmos esta colocação, aceitamos igualmente a definição de que o Chapa é a organização constituída pelo motorista, pelo cobrador, pelo proprietário da viatura e pela própria viatura. Estes são o Chapa. É desta micro instituição que depende o destino dos cidadãos no quotidiano migracional urbano.

Na estrada, no fazer Chapa efectivo, se o proprietário da viatura não coincide com o motorista, então o cobrador é a autoridade máxima. O cobrador manda, o motorista cumpre, os passageiros cumprem. Coercivamente ou não, com respeito ou não, mas cumprem! Quem gosta do cobrador? Naturalmente que o seu patrão, sempre que o cobrador apresenta uma boa receita diária e diz que a viatura está em óptimo estado, com combustível já no tanque para o dia seguinte. E entre os passageiros de cada dia, quem gosta do cobrador?!!? A resposta seria todos e ninguém!

Todos gostam do cobrador porque ele manda a viatura parar, e os leva aos seus destinos. Ninguém gosta do cobrador porque, buscando albergar o maior número de passageiros possível, constrange os passageiros que já tiverem estado na viatura acomodados confortavelmente. Todo o passageiro que entra no Chapa depois de atingido o limite da lotação oficial é visto como intruso pelos outros, só não é intruso a quem o conheça. Naturalmente!

É justo que as pessoas almejem viajar de Chapa numa situação de conforto mínimo. Como também, deve haver alguma razão (totalmente plausível ou não) para a avidez do cobrador em duplicar a sua lotação oficial, para ter gerado muito dinheiro ao fim da jornada laboral. A aversão ao cobrador por parte dos passageiros começa a partir do momento que aquele desrespeita os passageiros que exigem o respeito à lotação oficial, aos que se recusam a abrir espaço para acomodar o quinto passageiro onde devem estar apenas quatro…quando o Chapa pára apenas onde convém ao cobrador. Ou seja, quando se trata de recolher potenciais passageiros até pode infringir as regras de trânsito; mas, se algum passageiro pretende apear-se, já se deve observar as regras de trânsito, sempre em estrita conveniência aos seus intentos. Diz-se por ai que a pressão do patrão para gerar grandes receitas diárias e a concorrência selvagem rodoviária se combinam num comportamento do cobrador quotidianamente reprovado pelos utentes dos serviços de transporte público, as vítimas circunstanciais.  No Chapa, respeita-se e se desrespeita as regras de trânsito e de lotação. Se há três senhoras volumosas sentadas na mesma fila, o cobrador quer que elas inventem um espaço para albergar mais um passageiro…visto que cada fila, oficialmente, deve levar quatro. Quando são quatro passageiros menos corpulentos, o cobrador quer que se ofereça os centímetros quadrados livres a mais um passageiro. O único critério e princípio que rege o fazer Chapa é arrecadar o maior volume de receita diária possível. O respeito à lentidão dos idosos, das mulheres grávidas e das crianças, ao tomar o Chapa ou ao apear-se não faz sentido, uma perda de tempo. É, por conseguinte, uma perda de dinheiro. Afinal, time is money!

Então, o cobrador é aquela pesssoa de quem dependemos todos os dias em que não temos carro próprio ou boleia particular...se temos que percorrer longas distâncias, ou simplesmente temos pressa, ou está a chover...ou já estamos apreguiçados de caminhar! É o mesmo cobrador que, quase sempre, nos desrespeita e maltrata quando julga que cruzamos o caminho da meta financeira por si estabelecida para a jornada diária...é o autor de graves delitos morais, pelo custo de uma passagem de Chapa. Poucos cobradores são excepção ao perfil! É por via dessa dinâmica quotidiana que se tipifica uma atitude de aversão mútua entre passageiros e cobradores. O cobrador já vive com o preconceito de que todo o passageiro é maniento (porque alguns passageiros são mesmo). O passageiro nutre o preconceito de que todo o cobrador é malcriado (porque quase todos o são). Daí que o cobrador e os passageiros juntos, no contexto do Chapa, encontram-se numa situação de “barril de pólvora”! É deveras ruim detestar-se a entidade de quem se dependa no quotidiano. Deve ser infeliz tanto ao cobrador quanto aos passageiros. Qual das duas partes deve dar o primeiro para a pacificação da comunidade Chapa? Seriam os cobradores, classe que incorpora indivíduos humildes de moral e educação, quem se consciencializaria da importância de respeitar os passageiros e passariam a tratá-los deferentemente? Ou seria a comunidade de passageiros, composta por idosos, académicos, religiosos, etc., que daria o primeiro passo rumo à pacificação?

A VIDA EM STAND-UP COMEDY


Dois cidadãos aparentemente muito íntimos, mas distantes por culpa dos caprichos da vida, encontram-se num soturno parque, aonde os frustrados e os críticos colocam a vida no banco dos réus, e escamoteiam-na sem piedade nem hesitação. Aliás, segundo eles, a própria vida os ensinou que as coisas devem ser osso no osso, olho por olho. A vida faz isso com eles e com todos…uns resistem, outros desistem, a maioria fica refém dos solavancos dela! Então, já tentando suprir a distância temporal que os havia separado por longos caminhos desenrascados da vida, entreolharam-se quando por ai 20 metros os separavam um do outro, reconheceram-se apesar de todas as glaciações faciais próprias das intempéries do viver e sobretudo da sobrevivência amealhatória:
- Mon amiiiiiiii!, gritou um com os braços abertos correndo em direcção ao outro que o corresponde proporcionalmente.
- Ehhhh, mon grand amiiiii!, também de braços abertos e correndo ao outro. Adivinhava-se um abraço tão farto que fosse compensar todos os amplexos que não haviam trocado por anos e anos. Ambos corriam arrastados pela saudade mútua, pelo belo passado jovem que os mantinha em pé, pela fugidia esperança. Um abraço forte os fez um e, como que num salto duplo de asa delta, escorregaram de volta às emoções do passado. Sentiram-se jovens, veio-lhes aquela liberdade, e aqueles céus e paraísos respectivos. Por instantes promovidos a anjos, só o parque permanecia infernal: fedia a urina em ebulição, fezes em decomposição, ambiente ocupado preferencialmente por quem parecia desistir de batalhar.
- Por onde tens andado, mon ami? Fala…fala de ti, sour ta vie…, enquanto ainda entreabraçados, cada um como que a conferir rugas e tristezas, e sobrevivências na face doutro.
- Mano, esta vida é de cão…vida de canino mesmo. Nada é como sonhámos. Mas, Graças a Deus, tenho tido algumas sortes…por isso estou vivo…vivo de respirar, não de viver! O outro ouviu aquelas azedas confissões como se o amigo falasse do seu próprio currículo nos últimos anos. E propõe uma mesa redonda:
- Mas, …vamos analisar o que terá se passado mesmo para acabarmos deste jeito, mano. Éramos bons dans l´école…o que terá falhado?
- Sabes, fico decepcionado contigo quando me pedes para analisar…puxa!, a que ponto chegámos?!
- Como assim, mon ami? Precisamos fazer análise como nos velhos tempos. Era assim que compreendíamos as coisas e encontrávamos soluções…ou já não te lembras?!!
- Epá, deixa lá essa porcaria de analisar com os homossexuais…isso é uma sujidade do tamanho do pecado!
- Não percebi o teu ponto de vista…de que é que estás a falar, pá?!
- Sabes, eu te conheci como um grande artilheiro de damas rabugentas…não deixavas escapar nenhuma. Sabias lidar com qualquer rabo feminino que fosse carnudo…qualquer medida, a partir de xxxl…uhmm!!!?
- E o que isso tem a ver com análise ou analisar?! E isso com homossexuais?!
- Olha, eu prefiro morrer de erecção com a minha honra masculina salvaguardada…mas analisar…nem pensar.
Tudo indicava que a odisseia ao passado havia de acabar exactamente no abraço onde começara. A conversa não fluía. Cada um parecia bárbaro ao outro. Era uma autêntica conversa entre um extraterrestre e um terrestre. Mas, a conversa ia aos empurrões:
- Olha, mon ami, o que esta conversa tem a ver com a tua virilidade?!
- A única vez, perceba bem, a única vez que me analisaram eu era miúdo e havia uma necessidade sanitária…foi por recomendação médica…introduziram-me supositório! Nunca mais na vida, por qualquer outra razão alguém me vai analisar…não enquanto eu estiver consciente!
- Puxa!, Martins[†], afinal você está a pensar nisso…agora eu é que fico ofendido…como foste capaz de chegar até ai?
Ficaram ali os dois, com as mãos sobrepostas na nuca, com a cabeça entre as pernas, sentados num bocado de betão, de costas viradas um para o outro…visivelmente decepcionados um com o outro. Como um teria tido a coragem de propor uma análise? Como o outro teria interpretado a análise naquela insana perspectiva?
Silenciosos minutos depois, Martins emerge da decepção, ergue a cabeça, levanta-se e já afastando-se do outro, declara:
- Eu não sou analista…nunca fui e nunca serei…não sou analista…não sou dessa era!
- E pensas que eu sou? Eu sei que não és…volta aqui, vamos bater um papo…
- É assim como estragam a carne de galinha…batem-lhes o papo, a coisa rebenta e a comida fica com aquele cheiro de capoeira! Nunca aprendem…não quero!
E, sem acreditar que aquele encontro estava a escorregar para um desencontro que podia ser definitivo, porque Martins se ia sem sequer olhar para atrás, murmurando ao coro dos movimentos gestuais dos braços, tenta convencê-lo desesperadamente:
- Martingéeeeee….!, volta aqui, meu…volta Martins…por favor, meu sócio!
Martins refina no desprezo e desinteresse na relação e na conversa, e delibera:
- Caramba, pá! A nossa sociologia acabou! Notre sociologie est finie…

Adriano Félix

[†] Martins sofria de doença mental desde que a mulher da sua vida o abandonara com tudo o que ele havia conseguido na vida, e já não dizia nem interpretava a s coisas normalmente! Morreu semanas depois do histórico encontro. Paz à sua alma!